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aldeias da nossa terra



 ALDEIAS DA NOSSA TERRA
Já começa a amanhecer embora as noites longas de inverno nos indiquem que ainda muito tempo teremos de escuro e noite. As poucas luzes que permanecem acesas emprestam um tom amarelado aos recantos e às ruas da aldeia. O sol se acaso o dia o permitir, só aparecerá quando as horas da manhã já forem altas, mas as fainas, labutas ou canseiras das gentes do campo, começam cedo (…) Se se experimentar a vida de uma aldeia que ainda tenha as gentes mais idosas não será difícil ouvir os primeiros ruídos pela manhã ainda sem sol.
As pessoas encaminham-se com passos apressados quase sempre de caldeiro pesado ao braço, muitas vezes por sorte sua, empoleiradas no reboque do trator que lhes vem ao atalho e lhes poupa grande parte da caminhada. De boné de xadrez já gasto, enfiado na cabeça até às orelhas, o dono dá a salvação a todos e de sorriso largo nos lábios lá vão com cuidado mas aos solavancos pelo caminho irregular, para as mesmas tarefas. Apressam-se para chegar às suas hortas ou chãos, como é habito dizer-se na aldeia, ou para os pedaços de terra que não são nem uma coisa nem outra, apenas sítios rodeados de floresta com pequenos casebres em ruinas, alguns herdados dos seus antepassados mas já não são hortas, talvez refúgios, visitados às tardes por gente que foge da cidade e ali se encanta olhando o céu e o arvoredo muito verde, sentados na soleira das portas de pedra de granito já gasto… Pelo amor que sentem por aquela terra e por respeito pelos seus familiares, (que daquela terra viveram e aquela terra deixaram), e ainda por naqueles pequenos recantos se sentirem bem, longe do mundo cada vez mais conturbado, penso que aquele espaço é uma espécie de paraíso para quem se deixar apaixonar pelo silencio e pelo campo... Foi ali naqueles locais (longe do mundo), que alguns, agora mais idosos, herdaram parte dos seus hábitos pois por ali brincaram quando eram mais novos na companhia dos avós, e as raízes que agora renascem têm uma força quase igual às das árvores centenárias que lhes dão sombra e algum fruto quando a estação do ano permitir a colheita. Mas os que do campo ainda vivem, certo é que não podem desligar-se da terra que são as hortas ou os chãos já ditos. Por mais duras que  sejam as tarefas de amanhar a terra e cuidar dos «vivos», pois todos os dias ensaiam e enfrentam as mesmas pesadas canseiras, ainda assim não lhes falta alegria nos rostos enrugados e dourados pelo sol. É fácil reparar que o trabalho é árduo, o suor quantas vezes se lhes escorre pelo rosto, isto quando este consegue vencer o lenço que sob o chapéu lhes serve de esponja absorvente e lhes dá algum alívio. Mas agora é ainda manhã, o reboque do trator já seguiu o seu caminho, que não o mesmo, e as pessoas apiadas encaminham-se agora pelas veredas fora, às vezes em grupo mas não tardará que se separem e cada uma se encaminhe para aquilo que é seu, para abrirem as portas das cabanas, dos corrais e pocilgas porque há muito que os vivos, (animais vivos entenda-se esta expressão da aldeia), esperam em pé uns farejando as fechaduras das frágeis portas e outros de ouvido atento escutam os passos que se repetem todos os dias, porque os donos não costumam faltar e certamente já vêm a caminho.
Chegaram por fim e aí está o ritual de todos os dias, as portas abrem-se soltam-se os vivos que é necessário alimentar e estes com passos firmes e apressados encaminham-se para o dono num espécie de cumprimento quase querendo falar pelo menos ouvem-se grunhidos e cacarejos, só os patos mudos ficam em silencio mas não deixam de abanar a cauda para avisarem o dono que também são gente e que ali estão num ato de salvação. Não falta nada ao ritual, a confusão do costume está instalada!…  O que ali vai, Santo Deus, galinhas, cabras, perus, patos, só os porcos ficam de ferrolho corrido porque não lhes é hábito respeitar a Horta.
 Aí estão eles todos juntos, acotovelando-se “fazendo lembrar as impacientes filas dos transportes públicos das grandes cidades”. De focinhos ou cabeças ao alto por vezes olhando as mãos dos donos para avaliarem se ali vem a ração da manhã… e vinha ou ali vem, batatas cortadas a miúdo, couves migadas como de caldo verde se tratasse, maçãs e pedaços de pão rijo e seco que sobrou e já não servia a quem o dá. A tudo se vai misturar água tirada a pulso de um poço fundo, com caldeiro de zinco, suspenso em pendural enganchado ou aramado com arte, para não sair do varão quando este se afundar até água encontrar. Este dispositivo de retirar água do poço complementa-se com um engenhoso apetrecho centenário composto normalmente por uma pedra furada atado em barrote ou varal, como se diz ou como se costuma dizer, da madeira redonda e grossa que existe nas noras, que tem o prepósito de suportar a pedra que alivia o peso do balde no ato de subir. Tudo está organizado e simples mas não dispensa a força dos braços, que de pele grossa escamada não se escusam a amanhar o que de seu é. A água aí está despejada e distribuída pelas bacias de pedra ou barro para os servir a todos que de olhar atento aguardam as ordens do dono para poderem iniciar a primeira refeição do dia. Esperam um pouco e não tarda mergulharem o bico ou o focinho para de goladas suaves se saciarem da sede, que muita não era ainda, mas que servirá para tornar mais fácil a deglutinação da ração que lhes for dada. Vale a pena olhar os campos que parecem semeados, mas semeados ainda não estão, pois ao que se diz ainda não é tempo de cultura. Nasceram apenas ervas altas e verdes que aguardam o tempo de secar, se para o gado não servirem, e de lavrar para se processar a nova sementeira. Mas nos olhos de quem a terra cultiva parece existir sempre o brilho de um tesouro achado e não se cansam de observar e sentir a terra, mesmo sabendo que agora nesta época, de sustento nada dá, a não ser a frescura da erva alta ondulada pelo vento que torna a paisagem majestosa e sublime. Todavia no olhar da gente da cidade que de campo nada entende quando do campo se abeira, tudo lhes parece sementeira.
A cidade ainda dorme o ritual é diferente a vida não é tão dura, mas o ar que nela se respira não tem a pureza do ar do campo, que nos refresca os plumões e o espirito, parecendo transmitir-nos poesia como se ao longe um violino se ouvisse e tocasse para nós, despertando a nossa memória numa dança imaginária, que teima em permanecer cada vez mais perto, até que a realidade venha ao nosso encontro e nos acorde.
Sopra uma brisa fresca e o sol só agora começa a despertar, vem do lado de Espanha e envergonhado é ainda só um clarão vermelho talvez laranja, porem não tardará em mostrar um circulo intenso de fogo inundando toda a planície, logo todos os campos e inevitavelmente as hortas cujas ervas pela orvalhada da noite reclamam o calor do sol ou a luz, para concluírem o seu ciclo de vida curta. O sol começa a subir o suficiente para deixarmos de ver a linha curva do horizonte de onde lentamente nasceu e é espantoso ver como ele se liberta da outra metade do universo, fazendo lembrar o nascimento de uma ave, quando se liberta da placenta e dá as primeiras bicadas no casca que a protegeu e a ajudou a ter vida. Mas o sol apareceu limpo de placenta sem nuvens e não precisou de fazer nenhum equilíbrio nem esforço que fosse, para se endireitar que é o mesmo que dizer para preencher o espaço no céu com a sua luz. Já o mesmo não acontece com o sacrifício das aves no ato de nascer, observe-se o esforço despendido, (é a natureza que lhes empresta uma frágil força natural), para que sobrevivam e venham mais tarde a envolver-se nas lutas e nos incansáveis voos pela floresta.
 Agora e de repente a luz intensificou-se, o amarelo avermelhado que há pouco se avistava deixou de o ser, é agora uma a luz intensa da cor pura do sol, que de manhã é mais suave mais delicada que de tarde, quando emite calor intenso e nos convida ao refúgio na sombra das árvores. Só ao entardecer quando está prestes a esconder-se no horizonte oposto volta a manifestar suavidade e encanto. Mas esta luz majestosa inundou tudo o que é visível daqui desta casebre humilde, onde já morou gente e que serve agora para arrumar as alfaias agrícolas, alfaias manuais e leves já se vê, pois se nos atrevermos a olhar os arrumos a telha-vã encontramos apenas enxadas, encinhos e tesouras que hão ajudar à poda quando disso for tempo.
As horas apesar de tudo correm lentas como se os relógios tivessem parado naquele local, onde a erva se mistura com o chão das mimoseias e eucaliptos ou dos pinheiros bravos que com a luz agora nascida, tomam a nossos olhos a figura que sempre tiveram, arvores de ramagem abundante e perfumada. Embora não seja ainda o tempo de mostrarem flor que só nascem na primavera, pode ver-se que ainda resistem pequenas flores, mesmo não sendo flores deslumbrantes que encantem quem de flores entende, mas são as suas flores tímidas que emprestam um perfume mágico a estes campos de terrenos desnivelados onde a silhueta dos montes que se avistam ao longe têm tons de verde, outros salpicados de cinzento onde a terra se mistura num abraço com o céu. Sentado nesta pedra de forma quadrangular já gasta pelo uso de gerações, que tantas vezes serviu de banco para descanso das pernas cansadas no fim de dias intensos de trabalho, podemos ficar a refletir em sossego e a olhar este paraíso, este campo, este céu que agora com os vivos acomodados e o silencio se faz sentir de forma mais acentuada, as ideias que nos enchem a alma só são quebradas pelo som do sino da aldeia quando o vento está a seu favor. Assalta-nos a ideia de que ninguém estará à nossa espera e nós também não esperamos ninguém, o mundo parece ter parado agora e não existe vontade de deixar este recanto, onde só o acomodar das aves nas ramagens nos faz sentir que a vida não acaba aqui. Afigura-se-nos a ideia de que fizemos uma viagem mágica por um mundo que não existe… (ou que existe no pensamento de quem o queira sentir), pois todos nós podemos desenhar o nosso mundo com um lápis de cor, mesmo sabendo que ele se repete todas as manhãs de forma diferente, quase sempre sem poesia e duro, principalmente para os que lutam duramente pelo seu sustento nestes campos e recantos perdidos na imensidão do mundo.
Começou a escurecer e não nos apetece ir embora …

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